Análise Contos

O caso da Vara
 

Procederemos a análise do conto "O caso da vara" de Machado de Assis, um dos maiores nomes da literatura nacional. O pano de fundo em que Machado tecia suas obras abrangia desde um estreitamento com o período vivido pelo escritor brasileiro entre 1839 a 1908, bem como conflitos internos inerentes ao ser humano. Nesse conto específico, o conflito central trata da fuga de um jovem chamado Damião, o qual busca aliados para convencer seu pai de recebê-lo em casa e não mandá-lo de volta ao seminário, já que o moço não apreciava o sacerdócio. A fuga embora planejada por antecipação, por alguma circunstância teve que ser adiantada, é o que evidencia o início do enredo. Damião precisou improvisar e sem saber para onde ir lembrou-se da Sinhá Rita e de como seu padrinho tinha apreço por ela, vendo nessa situação um aliado para forjar sua liberdade.

Delineiam-se na prosa outros conflitos secundários, como quando João Carneiro se vê numa "saia justa" tendo que atender ao pedido incontestável de Sinhá Rita, indo enfrentar a ira de seu compadre. Outro tumulto que acontece é ao final do conto onde a "negrinha Lucrécia" não termina seu bordado e deixa a Sinhá Rita completamente enfurecida e Damião embora quisesse protegê-la por sentir-se culpado pelo atraso da moça, é ele quem acaba entregando à Sinhá o instrumento de tortura "a vara".

O clímax acontece em três circunstâncias com graus variados. No início quando Damião foge cria-se uma tensão, pois ele encontra-se totalmente perdido e resolve improvisar. O narrador se intromete na história, questionando "Para onde iria?", fazendo assim um movimento ao passado que o trouxe até ali. Num segundo momento a tensão da espera de Damião para saber se seu

pai o receberia, vemos que ele volta e meia ia espiar pela rótula (fresta da janela), se imaginando levado à força por dois negros. No epílogo temos um momento de uma surpreendente e maior tensão, pois Damião não consegue cumprir a promessa que interiormente fez a si mesmo de proteger a indefesa Lucrécia. Agora que a Sinhá Rita lhe havia dito que a causa era dela, e ao que tudo indica, ela não era mulher de perder uma boa briga. Damião não poderia contrariá-la, mesmo que para isso tivesse que entregar o instrumento que torturaria a pobre e indefesa Lucrécia.

Como protagonista temos a figura de Damião, que não chega ser nem um herói ou anti-herói, ele é um jovem com características comuns e tão peculiares a qualquer um. O jovem se vê em crise, privado da vida por estar confinado em um seminário. O desejo de seu pai fica claro que não era o que ele aspirava. Sobre a caracterização desse personagem, podemos dizer que embora não haja descrições físicas ele se configura como um personagem complexo, o que se confirma nas descrições do seu estado psicológico. O narrador conta como os outros viam Damião, um jovem "espantado, medroso, fugitivo, atordoado, espavorido, triste". Nesse caso a predicação é indireta, pois construímos suas características baseadas nos acontecimentos. Damião mostra-se esperto e parece perceber bem as fraquezas dos outros, sabendo tirar proveito da situação. Está claro que ele manipulou o sentimento recíproco de Rita e João como uma maneira de conseguir se dar bem.

Os demais personagens são secundários. João Carneiro, o padrinho de Damião, é descrito como um sujeito molenga, "moleirão sem vontade" e seu estado psicológico reflete o embate interior travado pelo pedido de Sinhá Rita. O narrador descreve seu semblante com "a pupila desvairada, a pálpebra trêmula, o peito ofegante", indicando o sofrimento interior. Seu tipo é quase complexo, há poucos predicados. O que temos é somente a abstração que fazemos durante os poucos diálogos e o conflito armado no interior do personagem.

O Reitor aparece tão-somente como um figurante que tece um pequeno comentário, pequeno, mas num tom moralizante, aludindo a humildade e bondade como o princípio da grandeza. Sua voz é ouvida como um eco do passado quando fora apresentado a Damião. Nas entrelinhas percebemos que Damião desde cedo carregava a promessa de tornar-se um grande homem. O

pai de Damião embora não configure um personagem, já que não há ação, ele é citado assim como os demais figurantes (personagens planas: as vizinhas, as crias e o padre), ele poderia ser visto como um antagonista se participasse ativamente das cenas, pois é ele quem impede o filho de voltar pra casa. Sinhá Rita, uma viúva, é de todos o mais bem elaborado personagem esférico (redondo), suas características físicas e psicológicas podem ser vistas em: "Sinhá Rita tinha quarenta anos na certidão de batismo, e vinte e sete nos olhos. Era apessoada (de boa estatura), viva, patusca (extravagante), amiga de rir; mas, quando convinha, brava como diabo". Temos também uma descrição de sua profissão em: "Sinhá Rita vivia principalmente de ensinar a fazer renda, crivo e bordado". Ela aparenta ser corajosa e se vê com o amor-próprio ferido com a afirmação de que ninguém poderia convencer João Carneiro a interceder junto ao pai de Damião, é o que podemos ver na passagem "Sinhá Rita ferida em seus brios". O narrador descreve Rita com um gênio de "galhofeiro", ou seja, barulhenta e debochada. Rita também demonstra uma personagem com vigor, disposta a lutar por uma ideologia própria. O que estava em jogo era o seu poder de persuasão e influência sobre João Carneiro.

A menina Lucrécia também aparenta um personagem esférico, não tão bem definido como o de Sinhá Rita, mas temos algumas descrições que nos permitem vislumbrar o seu semblante pueril e indefeso. Mesmo que Sinhá Rita ao final tente desvirtuar essa imagem utilizando os termos como "vadia e malandra". Ela era uma das discípulas de Rita, há algumas descrições físicas que denotam uma aparência judiada e serviçal, era uma moça pequena "uma negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda. Contava onze anos". O narrador intervém na história, falando de Lucrécia e diz que "Damião reparou que tossia, mas para dentro, surdamente", o que também pode caracterizá-la como uma moça resignada e amedrontada.

O tempo histórico utilizado por Machado de Assis é o tempo objetivo (cronológico). A história se passa no século XIX. O narrador conta que "Damião fugiu do seminário às onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto. Não sei bem o ano; foi antes de 1850". Período do Brasil Império onde os negros eram escravizados. Podemos observar isso na forma de tratamento dado a "Sinhá Rita", era dessa forma que os escravos chamavam sua patroa. E

também na forma como a Sinhá tratava "as crias", surrando com uma vara quando elas não cumpriam com a tarefa. Vemos que nesse período há uma forte influência da Igreja, o que fica claro na passagem em que João aturdido exclama em pensamento: "Deus do céu! um decreto do papa dissolvendo a Igreja, ou, pelo menos, extinguindo os seminários". Poucos detalhes sobre a disposição dos móveis na casa de Sinhá Rita foram revelados, mas no ambiente do cenário interior da casa havia fortes indícios de se tratar de um esquema de domínio do mais forte, economicamente abastado que impõe sofrimento "as crias" pela posição que ocupam. No tratamento dado a Lucrécia que segundo o narrador "receberia o castigo do costume", vemos uma situação trivializada por se tratar de uma filha de escravos.

O clima psicológico também é de domesticação, é o que transparece nas palavras trocadas por Sinhá Rita e João onde ela dá "a última cartada" devolvendo-lhe o bilhete com o seguinte escrito: "Joãozinho, ou você salva o moço, ou nunca mais nos vemos." Embora haja uma linearidade nos acontecimentos narrados em terceira pessoa, onde o narrador inicia contando um fato que aconteceu: "Damião fugiu", o autor utiliza-se da analepse ao recuar mais um pouco a história a fim de colocar o leitor a par da expectativa que seu padrinho tinha de Damião quando o levou ao seminário, lugar de onde principia o enredo. O narrador está fora da história como quem olha por sob os ombros, denota onisciência e onipresença, descreve os sentimentos e os embates psicológicos travados no interior dos personagens. No trecho: "‘Não tenho outra tábua de salvação’, pensou ele", temos a confirmação de que o narrador consegue ler os pensamentos. Ele encontra-se presente em todos os discursos e conhece bem os personagens e o lugar.

O discurso é entremeado, podendo ser direto, onde os personagens falam livremente como no diálogo entre Lucrécia e Sinhá Rita: "— Ah! malandra!" e " — Nhanhã, nhanhã! pelo amor de Deus! por Nossa Senhora que está no céu". Ou pode ser seguido por um esclarecimento do narrador, como no exemplo: "— Santo nome de Jesus! Que é isto? bradou Sinhá Rita." Mas também o narrador utiliza o discurso indireto na terceira pessoa, como em: "Damião, trêmulo, mal podendo falar, disse que não tivesse medo, não era nada; ia explicar tudo", reproduzindo a voz de Damião. A presença do discurso indireto livre pode ser visto no trecho: "‘Não tenho outra tábua de salvação’,

pensou ele", que seria uma espécie de monólogo interior, e em "Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, João Carneiro".

Como falamos anteriormente o pano de fundo do conto "O caso da vara" foi um período histórico governado pela monarquia. A realidade desse momento traz a baila questões recorrentes e comuns como a escravidão, subjugação do mais fraco e a mera utilização do outro em benefício próprio. É provável que a história seja fictícia, embora do ponto de vista da verossimilhança seria coerente com o tempo histórico. O conto surpreende com um final tenso. E o "herói" que deveria salvar a mocinha, sucumbe diante do egocentrismo. Quando Sinhá Rita pede-lhe a vara, "Damião ficou frio... Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim, tinha jurado apadrinhar a pequena, que, por causa dele, atrasara o trabalho..." e mesmo fitado pelos olhos súplices de Lucrécia, bem poderia salvá-la como tantas vezes ele próprio implorou que o salvassem, mas estava ele cerceado pelo desejo ordinário de sua própria liberdade. Ao entregar o instrumento que puniria a inocente, frágil Lucrécia, Damião escolhe abdicar dos votos secretos que fizera de apadrinhar a menina. E o que temos no derradeiro minuto é um ato de covardia, vindo de quem poderia redimir-se dos seus atos, mas não o fez, porque desde o início seu caráter mostrou-se ambíguo e interesseiro.

By Luciana de Castro Regis 

Bibliografia:
http://pt.wikisource.org/wiki/O_Caso_da_Vara

http://pt.wikipedia.org/wiki/Machado_de_Assis