A Lírica- Análise de poemas

A Lírica

A Lírica, nascida da oralidade, orquestra o som das palavras combinando-as com rima. Ela existe desde a Grécia antiga no século VI a.C., onde os versos eram feitos para serem entoados ao toque da lira ou de outro instrumento. Embora, na atualidade ainda seja possível encontrar canções feitas sob as "leis" da métrica, a maioria das poesias, segundo a profa Beatriz Helena Pereira (p.64), "é escrita para ser lida ou recitada". A forma elegante como o poeta Octavio Paz (1982, apud PEREIRA, p.61) descreve o embate entre "criação ou inspiração" chama a atenção, pois nas suas palavras a poesia é tudo isso e mais: "conhecimento, salvação, poder, abandono, [...] um convite à viagem, regresso à terra natal, inspiração, respiração, exercício muscular [...] sublimação, compensação, condensação do inconsciente. Expressão histórica de raças, nações, classes". O mesmo autor esclarece que nem todo poema é tocado pela poesia, assim como podemos ter poesia sem poema. De acordo com Paz (1982, p.16, apud PEREIRA, p.62), o leitor reelabora, complementa suas leituras, buscando portas de entrada onde se "envereda pela trama de imagens, pensamento e som".

Quanto à forma, a principal característica da Lírica é o verso, embora exista a prosa poética. Geralmente ela se constrói num estilo espontâneo e discreto, permeado pelos sentimentos mais ocultos. Seu terreno é o das subjetividades, ainda que em alguns casos haja elementos objetivos. Numa divisão clássica, as formas fixas são conhecidas como: Gênero Épico ou Narrativo, Gênero Lírico, Satírico e Humorístico (Paródia). Dentre os elementos da Lírica, destacamos a metrificação, em que os versos podem ser isométricos (simples ou compostos), sempre que há igualdade na dimensão dos versos, não ultrapassando doze sílabas, e heterométricos (verso livre ou polimétrico) onde não há formas fixas de metrificação. O verso isométrico simples subdivide-se em: monossílabos, dissílabos, quebrados de redondilha (menor ou maior). Já os compostos são: redondilha (menor ou maior), heroico quebrado, octossílabos, eneassílabos, decassílabos, hendecassílabos e dodecassílabos. Duas regras importam na contagem das sílabas, a saber, que a contagem se dá até a última sílaba tônica do verso e juntam-se sílabas a fim de obter êxito na contagem. No que diz respeito à disposição dos versos em estrofes podem ser: Monóstico (1 verso), Dístico (estrofe de 2 versos), Terceto, Quarteto ou Quadra, Quintilha ou Quinteto, Sextilha ou Sexteto, Sétima, Oitava, Nona, Décima e Irregulares (mais de 10 versos).
Ao fazermos a escansão de um poema, percebemos figuras de dicção. Dizemos que há
elisão quando uma vogal seguida por outra é absorvida na contagem. Há sinérese quando dois sons se fundem num só. E falamos que há diérese quando ao contrário da sinérese, há uma separação entre dois sons dentro da mesma palavra. Tudo isso permite que um verso seja isométrico.
Já a rima permite estabelecer uma afinidade entre os fonemas. Pode ser interna, quando a palavra final rima com outra do começo ou meio, e rima externa sempre que há repetição de sons que se assemelham ao "final de diferentes versos". Ela ainda pode ser classificada em rima consoante quando vogais e consoantes são análogas, e podem ser toantes sempre que há "semelhança na vogal tônica", sem a necessidade de que outras vogais ou consoantes façam rima. Nas formas fixas dos poemas, as rimas são assinaladas por letras do alfabeto e podem ser consideradas interpoladas, cruzadas, emparelhadas e misturadas. Existem também versos sem rima, denominado rima branca. Ainda, referindo-se à posição do acento tônico na rima, pode ser aguda (oxítona), grave (paroxítona) e esdrúxula ou proparoxítona. Fala-se também de rima pobre e rica, estes dois conceitos estão ligados aos aspectos gramatical e fônico. Os versos também podem ter efeitos sonoros, visando à harmonia das palavras. Desses se destacam a aliteração (repetição de consoante), assonância (repetição de vogal), repetição de palavras e onomatopeia (sons). De acordo com o contexto e a intenção do autor as formas fixas da lírica podem ter estilos variados. O soneto é uma das formas mais antigas e que tem se renovado com o tempo. A quadrinha é a mais popular, desde cedo as crianças aprendem sua forma embalada nos versos rimados. No nível sintático podemos observar o encadeamento em que um verso complementa o sentido de outro, se há dinamismo ou estaticidade, se há figuras de similaridade (comparação, metáfora, alegoria e sinestesia). No entanto, embora toda essa estrutura seja importante se fazer conhecer, não podemos deixar de lado a fruição, aquilo que nos toca referente à poesia, as emoções que o lírico desperta na alma.


Análise do soneto de Camões:

Al/ma/ mi/nha/ gen/til,/ que/ te/ par/tis/te
Tão/ ce/do/ des/ta/ vi/da,/ des/con/ten/te,
Re/pou/sa/ lá/ no/ Céu/ e/ter/na/men/te
E/ vi/va eu/ cá/ na/ te/rra/ sem/pre/ tris/te.

Se/ lá/ no a/ssen/to e/té/reo, on/de/ su/bis/te,
Me/mó/ria/ des/ta/ vi/da/ se/ con/sen/te,
Não/ te es/que/ças/ da/que/le a/mor/ ar/den/te
Que/ já/ nos/ o/lhos/ meus/ tão/ pu/ro/ vis/te


E/ se/ vi/res/ que/ po/de/ me/re/cer/-te
Al/gu/ma/ cou/sa a/ dor/ que/ me/ fi/cou
Da/ má/goa,/ sem/ re/mé/dio,/ de/ per/der/-te,



Ro/ga a/ De/us,/ que/ te/us a/nos/ en/cur/tou,
Que/ tão/ ce/do/ de/ cá/ me/ le/ve a/ ver/-te,
Quão/ ce/do/ de/ me/us/ o/lhos/ te/ le/vou. 


No nível semântico, percebe-se figuras de oposição (antítese) nos contrastes "lá e cá", "partir e repousar", "céu e terra". O autor usa de um eufemismo (partir) para suavizar a ideia da morte presente no texto. O eu-lírico refere-se ao lado terreno, em que na sua ótica de visão é um lugar triste de viver sem a beleza da alma (lado espiritual). O soneto é isométrico, respeita as leis das rimas métricas, sendo composto por dois quartetos e dois tercetos. Após a escansão dos versos, chega-se à conclusão de se tratar de um soneto decassílabo, com algumas figuras de dicção como elisões e sinéreses. Quanto à rima externa, os sons nas duas primeiras estrofes se repetem ao final de diferentes versos, há semelhanças entre vogais e consoantes, o que indica uma rima consoante. São essas interpoladas e emparelhadas nas duas primeiras quadras, sob o esquema ABBA, pois o primeiro verso rima com o último, e o segundo verso rima com o penúltimo. As rimas da primeira quadra são ricas e as rimas da segunda e dos tercetos são pobres pois pertencem a mesma classe gramatical. As duas primeiras estrofes apresentam sílabas paroxítonas. Figuras de efeito sonoro também podem ser percebidas, como a aliteração na consoante T repetida ao longo dos versos. Também há assonância, na repetição de vogais E, I, O e U. Há, sem dúvida, uma musicalidade melancólica nos versos. O tom discursivo de lamento denota ser mais lógico-verbal. Os verbos indicam uma estaticidade, onde o eu-lírico suspira pelo amor que perdeu e demonstra um desejo, anseio pelo reencontro.
Lendo e relendo o poema de Camões, procuro perceber as sensações que os versos despertam. Sinto as palavras tocadas por uma saudade melancólica da alma que se foi e deixou um vazio, quase como se a própria alma dele tivesse partido. Camões fala de uma separação, e o lugar em que a alma querida repousa é intangível. Ter consciência disso é quase insuportável. Os versos sussurram um lamento pela perda de um grande amor. O poeta fora logrado pelo destino (ou quem sabe Deus) que lhe tirou sua querida cedo demais, tornando a vida desgostosa. Viver sem esse amor é quase morrer, pois, se a alma dos amantes é una, a partida dela carregou consigo a alma dele também, deixando-o solitário e vazio para enfrentar a crueza da realidade absurda deste mundo. Esvaído de sentido, descontente de viver, a voz de quem se faz ouvir nos versos do soneto aspira por outra vida, onde a presença ardente do amor novamente lhe possa aquecer. No corpo fatigado, um frágil pavio de esperança se acende, ao cogitar a possibilidade da memória transcender até o lugar em que ela está. O clamor lírico do poeta procura alcançar os ouvidos divinos para, quiçá, possa Deus conduzi-lo o quanto antes para junto de sua amada.

Por Luciana de Castro Regis

&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&

4º Motivo da rosa

Quem nunca voou nas asas de um poema não sabe o que é contemplar o universo interior em verso. Um poema sussurra segredos, convida a alma a se aventurar numa tessitura de mistérios. Um leitor crítico envereda-se nessa trama e vê para além do que está posto, lê entrelaçando as entrelinhas, e assim encerra subjetividades acolhidas pela alma. A poesia tem o poder de nos tirar da realidade e fazer contemplar, ainda que brevemente, a presença do eterno. Em o 4º Motivo da rosa, nas duas primeiras estrofes Cecília dialoga com a rosa, como quem conversa com a própria alma, e então se volta para o leitor falando dela própria nas duas últimas estrofes.
O poema contemporâneo se serve dos mesmos elementos presentes nos poemas de forma fixa (isométricos), porém seus versos são mais livres, desprendidos da constância do metro. Nesse dístico, um som se repete como um refrão (mim) emprestando ritmo ao poema. Ao final dos versos observamos palavras oxítonas e paroxítonas. Analisando as figuras de dicção que formam os sons do poema constatamos a presença de uma elisão e sinéreses.
Não/ te a/fli/jas/ com /a/ pé/ta/la/ que/ voa:
tam/bém/ é/ ser,/ dei/xar/ de/ ser/ a/ssim.

Ro/sas/ ve/rás/, só/ de/ cin/za/ fran/zi/da,
mor/tas/, in/tac/tas/ pe/lo/ teu/ jar/dim.

Eu/ dei/xo a/ro/ma a/té/ nos/ meus/ es/pi/nhos
ao/ lon/ge, o/ ven/to/ vai/ fa/lan/do/ de/ mim.

E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.

A presença da rima externa é facilmente percebida nas últimas palavras das estrofes, onde apresentam uma repetição na rima aguda e consoante nas oxítonas "im". Vemos a presença de rima rica em: rosas (substantivo feminino) e verás (verbo ver, indicativo, 2ª pessoa do futuro do presente). Embora tenhamos uma rima pobre nas palavras fim (substantivo masculino) e jardim (substantivo masculino), por se tratar de uma mesma classe, a utilização desses vocábulos em combinação com o pronome oblíquo pessoal "mim" e o advérbio de modo "assim" enriquece a rima. O mesmo pode ser visto em: cinza (substantivo masculino) e franzida (adjetivo). No oitavo verso do poema ocorre uma toante no oitavo verso (vão) e nono verso (não). Há assonância, pois vogais se repetem ao longo de todo o poema. Podemos observar figuras de harmonia como anáforas no início dos versos da última estrofe, onde os pronomes oblíquos átonos se repetem harmonizando e conferindo ao poema certa musicalidade. Bem como ao final de todas as estrofes há anáforas na repetição dos últimos versos fim/assim/jardim/mim. No primeiro verso há presença do pronome oblíquo átono de segunda pessoa do singular tu ("te"), e na segunda estrofe o primeiro verso reforça o tu em "verás" e "teu jardim". Na terceira estrofe há presença marcante do eu lírico, reforçado no pronome do caso reto da primeira pessoa do singular "eu deixo", e no pronome possessivo da primeira pessoa do singular "meus", também no pronome oblíquo tônico: "mim". O quarto dístico novamente reforça o eu lírico no uso dos pronomes oblíquos átonos de primeira pessoa ("me"), em "perder-me", "me lembrando", "desfolhar-me", e com o verbo na primeira pessoa do singular "tenho (eu)".
O poema orquestra rimas e imagens que surgem tão logo os lábios o leem. Apesar disso, ele não deixa de ser lógico-verbal, já que ao ser lido faz relação com outras falas da própria poetisa, e com outros discursos. O poema, ao falar dos espinhos perfumados, traz à memória um antigo ditado oriental, "o sândalo perfuma o machado que o fere", cantado em verso pelo músico Renato Russo.
Cecília cria uma metáfora da vida com suas belezas e contradições. As figuras de antítese da rosa delicada/forte, efêmera/eterna podem ser percebidas na abstração metafórica dos versos: "Por perder-me...é que não tenho fim". Também há um paradoxo em "também é ser, deixar de ser assim", pois ao deixar de ter uma forma é que se ganha outra. A poetisa também se utiliza de alegoria, pois há uma sequência de metáforas, onde as pétalas que voam são os anos idos, a beleza arrancada, despedaçada, e as rosas intactas, mortas, desejos reprimidos, não realizados, e mesmo coisas e pessoas que se foram, deixando saudade. O aroma e os espinhos também são simbólicos, representam a memória, as marcas (boas ou não) que deixamos nas pessoas pelas quais passamos. O poema ainda desperta aromas, sensações e imagens, sendo, portanto igualmente imagético. Há sinestesia nos versos cinco e seis, em que o vento carrega o aroma e desse modo vai falando dela (rosa).
Mais do que a escolha e economia das palavras, Cecília Meireles parece transpor em versos o sentimento da transitoriedade de tudo que carrega com uma fluidez que lhe é peculiar. O poema fala da fugacidade da beleza levada nos ventos do tempo e das rosas intocadas, franzidas, mortas que por medo de aventurar-se não saíram do lugar. É melhor perder as pétalas arriscando-se, ferir-se ferindo, espalhar o aroma do próprio perfume, do que viver na apatia, insensível às alegrias e dores deste mundo. Ao mesmo tempo em que a vida é efêmera, ela se eterniza na memória. Perder-se faz parte da jornada, e é necessário perder a inocência e a fragilidade, para achar-se numa forma mais madura, mais forte.
Por Luciana de Castro Regis

&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&